A fé queima em luzes vivas vindas das velas e dos corações. A fé se dobra nas esquinas, sobe e desce as ladeiras, se espalha pelas praças e vai aglutinando, agrupando, fazendo uma espécie de osmose com as pessoas. Todas na mesma massa. Elas vão se juntando e crescendo o grande cordão. Como uma serpente se esgueirando nos grandes paralelepípedos exalando o cheiro forte do incenso e se movendo lentamente como se enfeitiçada ao som dos sinos e da mais pura tradição.
A procissão na pequena cidade do
interior, da minha cidade, vai levando
junto em seu trajeto toneladas de tradições e de sentimentos. Os casarões
históricos com suas janelas ornadas por panos, velas e imagens sagradas são
pequenos altares onde fieis de mãos postas
acolhem e se irmanam ao silencio piedoso do cortejo embalados pelas
rezas e pelas tristes canções cantadas
por séculos. Melodias de muito além, de outras gerações e que trazem em suas
notas o choro, o drama, as dores e as
mais diversas indagações. Tem tanta história em tudo isso que até me perco.
Fico pensando quantas vezes pisei
nas pedras grandes dos paralelepípedos (hoje asfalto) da minha pequena
Pitangui, enquanto ouvia aquela música: os anjos todos os anjos... Repeti as
rezas... Muito refleti no sermão da
quarta feira do encontro... Senti pena do pobre senhor dos passos com aquela
pesada cruz nas costas... Imaginei as dores de Maria com as lanças que transpassavam o coração... Também me lembro do quanto me contrai
em tristeza vendo o senhor morto no esquife embalado pela marcha fúnebre
da banda José Viriato após o triste e dramático
sermão do descendimento.
Os padres com as batinas em cores
tristes trazem o clima da mortificação,
dos sacrifícios e dos pesares pelas faltas e pecados. O medo do inferno
difundido por séculos e um pouco esquecido nos últimos anos, parece ressurgir como algo escondido que se do
nada se revela. Uma aura de culpa e contrição se espalha a partir da fumaça e
do cheiro das velas e se e espalha pelos cantos da cidade impregnando em tudo uma
poesia sutil e uma beleza triste.
E a procissão vai rompendo, tal
qual uma serpente, se esgueirando, visitando as ruas... nossa cidade do dia a dia, a cidade alegre do
sol e do burburinho da semana, agora é quieta, escura e contrita. Tudo converge para o silêncio, a
contenção e os poucos movimentos.
Família,
antigos amigos, falecidos, oportunidades perdidas, dia a dia, frases não ditas,
mágoas do passado renascendo, arrependimentos, o pesar do não volta mais, encontros,
outros tempos, tradição. Tudo misturado num cortejo existencial, que vai também
serpenteando dentro de mim com velas acesas, incensos medos e indagações. A
procissão vai muito além dessas ruas...
E sigo o cortejo rezando num
grande rosário de saudade e de pensamentos. Ah quantas contas tem, Quantas
contas!