Autoria Múcio Ataide
Passei pela praça e vi aquele
homem tomando cerveja sentando em um banco. Um fato corriqueiro, já vi pessoas tomando cerveja em vários
lugares, nos bares, nas praias, andando pelas ruas com a lata na mão, nada
diferente, então o que chamou a minha atenção? Por que eu achei que ele não
podia estar ali tomando a cerveja? A
pergunta não demorou a ter uma resposta: aquele era um mendigo que há algum
tempo havia me pedido uma esmola na rua. Tinha
certo impedimento físico que segundo ele o impedia de trabalhar. E o mancebo usava o dinheiro ganho para beber.
Num primeiro momento senti-me
indignado com aquilo e até mesmo enganado. Uma vozinha maldosa disse bem lá no
funda da minha mente. – Então esse malandro me enganou, pediu esmola, e eu
pensando que era para comprar comida. Agora está ali bebendo. Não está certo
isso. O certo seria ele comprar comida. Comprar o essencial para o seu sustento.
Mas logo depois outra voz falou.
– Eu chego à minha casa, posso abrir aquela lata de cerveja que está na
geladeira e tomar quando eu bem quiser, sem que ninguém julgue o meu momento de
prazer. Eu posso, ele não. E porque eu posso? Porque eu tenho um pouco mais.
Então a realidade caiu como uma
pedra em cima de mim. Quem tem mais, tem mais direito. Aquele homem tem menos
que eu, e um pouquinho só a menos, então ele tem menos direito, eu o julgo por
isso. Eu o julgo porque ele está fazendo algo que eu gosto de fazer. Eu o julgo
por me achar de certa forma superior a ele.
Então é assim? Ser pobre não é
apenas não ter o que comer? É não ter o direito a muitas coisas, é não ter direito
a se deliciar com uma boa cerveja. É viver apenas para o que é básico?
Aquele homem que ali está, pobre
mendigo, doente, impossibilitado de trabalhar vivendo de esmolas está fadado a
não ter prazer, a sepultar sua vida antes da morte. Qual o sentido existe nisso?
Eu tenho apenas um pouco mais que
ele, sou pobre, classe baixa, trabalhador, assalariado e posso tomar cerveja,
mas ele que tem menos, um pouco a menos, não pode.
Mas o sistema é injusto não
apenas para criar necessidade, mas sim para criar a estratificação e
classificar as pessoas em classes e categorias. E deles extrai dinheiro e direito.
A primeira análise empírica, do
homem comum, é cruel julga e aponta o dedo para condenar. A segunda, do
cientista social entende, compreende que a coisa vai muito além. Muitas questões
estão ali dentro daquela lata, que ele sorve com tanta alegria, parecendo ser a
coisa mais gostosa do mundo.
Vi uma lógica no meu julgamento e
ao mesmo tempo vi uma grande injustiça nele. Percebi como as coisas são
perversas e como tudo está calcado em cima da estratificação. Quem pode fazer isso
ou aquilo? A quem é dado esse ou aquele privilégio? Tem mais pode mais, tem menos pode menos? Não
é apenas ter o dinheiro para comprar, mas é o direito de realizar. Pois ele tem
o dinheiro, ganhou pedindo, não roubando, mas não dou a ele o direito de fazer
o que quiser com o dinheiro que é dele.
Soberba, pura soberba. E por
causa disso o meu dedo apontou para ele e logo o execrou pelo ato que pratico
com a maior naturalidade sem que ninguém me aponte o dedo. Vejam só o tamanho
do abismo que o sistema cria. O enorme buraco que existe entre uma existência e
outra.
O primeiro raciocínio simples e
empírico faz sentido, é o que todos pensam, mas o segundo vem mostrar o tamanho
das injustiças, a calamidade da perda simples de um direito. Pobre só pode comer
tal qual um animal vive apenas para as coisas básicas e elementares, não nasceu
para os prazeres e delícias , está fadado a carregar sua existência miserável e
sem graça até o fim dos seus dias. A mendigar pelo básico, viver pelo básico, uma
vida básica e sofrida.
E assim segue até que a vida
diga: - Chega, já sofreu demais. A cerveja é só para os privilegiados iguais ao
Múcio, quem tem um pouco mais que você, só para os que têm mais, mesmo que seja
só um pouquinho mais. Para eles, sim é permitido o prazer, o gozo e as alegrias
da vida. Para você não. Bem feito! Quem mandou ser pobre sem nada? Quem mandou
não conseguir emprego, quem mandou ser doente e não poder trabalhar? Coisas da
sorte, do destino, culpa sua, somente sua. Direito a menos para você, prazeres a menos
para você. O Múcio pode, ele sim, tem direito. Você não. Agora é sua hora de
ir. Libere o banco da praça para outros mendigos, outros mais dignos que gastem
o dinheiro da esmola com comida e não com prazeres a que não têm direito.
Sai dali pensando sobre essas
duas visões. A simples e a sociológica e nenhuma delas resolveu o problema do
mendigo que continuou lá saboreando a cerveja, parecendo bem feliz. Um hiato
para suas dores e seus dramas.
-Saúde amigo!
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