Aproveito o conto abaixo e a reflexão dele para desejar a você caro leitor deste blog um santo e abençoado natal e um 2024 cheio de coisas boas. Boas Festas! Felicidade!
Conto de Natal 2023
Autoria Múcio Ataide
Indeciso bateu com os nós dos dedos na porta, logo abaixo da
guirlanda verde e vermelha. E Por alguns instantes pensou em desistir. O corpo
estava bambo, tremia um pouco. Sentia
medo e tristeza. Não tinha meios de
conter as lembranças nem o furor interno ao voltar ali.
Ouviu o ruído quase surdo de uma chinela havaiana castigando o antigo assoalho. Ela vinha devagar. Dali a
pouco abriria descortinando um passado inteiro, tal qual as cortinas de um
teatro se abrem para que o drama comece.
Viu o vulto por trás do
vidros coloridos da porta, depois ouviu o clic da fechadura e finalmente o interior da casa.
Por trás da porta
apareceu um rosto moreno, de aparência cansada já um pouco enrugado
trazendo olhos negros tristes e
indecisos. Um sorriso que era de
felicidade, mas que escondia ou tentava esconder lágrimas.
–Oi Roberto. Você veio, que bom!
–Como está minha irmã?
–Dá um abraço.
O abraço revelou o que o sorriso escondia. Represas se
rompem quando a força das águas é grande demais.
Depois de um instante de silêncio embaraçoso e indeciso,
recompuseram-se.
–Entra, senta aí, eu vou passar um café e trazer um bolo de fubá que acabei
de fazer e a gente conversa.
Enquanto ela foi à cozinha ele aproveitou para andar um
pouco pela casa, reconhecendo o local, tocando nos móveis, sentindo arrepios, sem poder impedir os gatilhos mentais que o
atacavam sem piedade. Os caibros escuros, o chão de pisos claros, os quadros de
santos na parede. Tudo parecia conservar os ares de outras eras. Estar ali era dar uma abraço apertado no passado.
Entrou em um cômodo e outro, tateou cada cantinho esquecido. A casa era invadida por um raio insistente de
sol que dourava parte da sala e parecia acordar outros tempos e despertar um
estranho misto de dor e alegria.
–Senta aí mano. Aí o café fresquinho e o bolo que você tanto
gosta. Vamos conversar. Puxa que bom que você veio. É a primeira vez que volta
aqui depois...
–Ah Amanda se você soubesse como foi difícil vir.
–Eu imagino. Mas você está muito bem mano. Continua o
morenão alto e bonito que arrasava com a gatinhas na escola. Eram todas
apaixonadas por esses olhos castanhos e o porte atlético. Não mudou muito não.
–Bom, mas caiu neve sobre os cabelos negros.
–Ah essa neve cai mesmo, eu tenho meus artifícios para contê-la.
– É o artifício acaju.
–São naturais.
–Claro que são.
–Na nossa família a neve cai bem cedo.
–Hum, delicia de café e esse bolo esfarelento também está muito gostoso! Igualzinho ao da
mamãe.
–E como vai a vida?
–Estou batalhando com meu escritório. Dizem que por lá tem
um advogado pendurado em cada árvore, então a concorrência é braba. Mas vou
indo.
–Devagar você chega lá. Eu por enquanto estou vivendo com a
pensão do Rubens, mas eu quero arrumar um trabalho. Depois que saí do
supermercado, minha vida está muito vazia. O dia inteiro nessa casa escura não é
fácil não.
– Isso mesmo mana, arruma um serviço e ocupa a cabeça, lhe
fará bem.
– Mas a casa continua igual né? Ali, a velha cadeira da
mamãe. Ela só se sentava nela, lembra?
–Deixei no mesmo lugar, com a mesma almofada. Tinha um ciúme
danado dessa cadeira e se eu ou você
ocupássemos aquele lugar ela logo chiava.
– A toalha de crochê sobre a mesa. Lembro bem do dia em que
ela terminou de fazer. Foi uma obra de arte e se gabou disso.
– É ela adorava fazer crochê
– Os retratos, os móveis,
o oratório de madeira com a imagem de Nossa Senhora Aparecida que
continua com o terço enrolado no pescoço. Você ficava brincando de enforcar a
santa. Que maldade! O velho guarda louças, as tigelas esmaltadas, o fogão de malta, aquele do frangão do domingo, tudo do mesmo jeito.
Você conservou o jeito dela.
– Eu pensei em mudar tudo, mas me doeu, na hora que comecei
a tirar as coisas do lugar, senti que não devia. Parecia estar manchando a
imagem dela, sei lá. – baixou os olhos,
depois colocou as mãos de unhas muitos vermelhas sobre o rosto. Era como se
cada frase fizesse espetar uma lança no peito.
–Eu te entendo – Passou a mão sobre a tinta acaju, não conseguia esconder o tremor, pegou um maço de cigarros e o isqueiro que estavam sobre a mesinha de centro. Acendeu-o
e tragou muito lentamente assumindo uma postura
introspecta e distante, tentando ordenar os pensamentos . O trago era a
busca do relaxamento e do alívio.
–Quer?
–Não, parei.
–Aquela foto do seu casamento não estava ali.
–Coloquei ao lado da foto da mamãe. Coloquei hoje, porque
assim logo estaremos todos juntos na nossa ceia. Ceia, que grande ceia! Ah
Roberto perder a mãe e o marido no mesmo ano é demais, é para acabar com o
natal de qualquer um – então a represa novamente entornou.
– Mas estaremos juntos, isso é o que importa – ela fez cara
de muxoxo, como se a última frase dele fosse um remendo em pano velho. Frase
feita, tentativa frustrada de mascarar a realidade.
–Dois órfãos
solitários, a viúva sem filhos e
o solteirão convicto. Grande natal!
– Ah você montou o presépio. Ali esta. – Aproximou do
cenário colorido que estava colocado sobre uma pequena mesa no canto da sala. A
árvore de natal e a gruta de Belém. Viu
uma virgem Maria de olhar terno, um São José com cara de responsável, e as
vaquinhas e ovelhas que o faziam lembrar-se de um cenário bucólico e distante de
muitas outras noites santas perdidas no tempo. O presépio montado e remontado
uma vida inteira. Todo fim de ano ali àquele cantinho, acompanhando a evolução e a decadência das
coisas. Vendo os meninos cada ano maiores e a vida se transformando a cada
ceia.
–Ah e ele não poderia faltar. Nem esperou a meia noite e já
colocou-o no seu trono – Ela riu e pareceu por alguns segundos conseguir espantar a névoa triste que pairava
sobre sua cabeça
–Ele é diferente de todos os outros uai.
–Ah mana essa história
é muito divertida. O menino Jesus sem braço. A imagem caiu, quebrou o
bracinho dele, então papai disse que ia comprar cola e colar.
–Senhor Ademar, sempre tentando consertar as coisas. Que
saudade!
– É, mas o capetinha do Robertinho fez questão de sumir com
o bracinho. Olha que heresia brincar com o braço do Cristo. Então papai se
propôs a comprar outra imagem. E a mamãe toda brava disse: – Não Senhor, só
porque ele é deficiente nós vamos desprezá-lo? Não. Então quer dizer que se eu
perdesse parte do braço você iam me jogar fora e achar outra substituta. Não,
não, nada disso.
–Hahaha, essa família era uma piada! Quanta saudade de tudo
aquilo!
– Depois de levar uma boa bronca Robertinho nunca mais quis
brincar com as imagens do presépio. E o menino Jesus sem braço ficou aí a vida
inteira.
– É eu me lembro que gostava de ficar passando a mão no
toquinho de braço.
– Então vai lá ainda pode gostar. – ele tocou a imagem bem
devagar.
–Dá uma sensação boa. Olha aqui, estou sentindo um pedacinho
da pontinha do braço, do lugar quebrado riscando meu dedo. É como se eu o
estivesse fazendo carinho. E ele retribuísse. Dá uma sensação gostosa de paz. Lembra que eu dizia que ele falava comigo
enquanto eu fazia isso. Dava-me conselhos?
–Ah é mesmo tinha me esquecido de mais essa sua bobaginha.
–Olha o respeito com o irmão com mais velho heim.
– E o Robson?
–Quem?
–Robson nosso primo. Eu brincava com ele aqui na rua.
–Ah sim, cabeça a minha, até tinha me esquecido dele, aquele lá é estranho, vive solitário, não liga
muito pra gente. Mora num barracão lá do outro lado da cidade. Sumiu depois que a tia Nena morreu. Vendeu a
casa dela e se mudou. Não sei nada da vida dele.
– Eu preciso ir até lá. Não sei por que, mas me deu vontade
de vê-lo. Eu preciso ir! Você tem o endereço dele?
Ela foi até a estante, abriu a gaveta, pegou um pedaço de papel, uma caneta e anotou o endereço. Enquanto fazia isso
sentiu um aperto no coração e teve uma ideia.
–Aqui está. Fica no
bairro Malheiros. Na parte mais velha da cidade.
–Sei onde é. Uai, mas agora a cidade tem parte nova e velha?
–Imápolis cresceu muito nos últimos tempos. Está parecendo
cidade grande.
–Mano, convide o Robson para passar o natal aqui com a
gente.
– Vou convidar.
Foi um pouco difícil achar a casa do primo. Teve que se esgueirar
por diversos becos lamacentos e pedir um trilhão de informações. As ruas
daquele bairro eram tortuosas, sem placas e de difícil acesso. Por fim chegou.
Um barracão sem reboco com janelinhas pequenas azuis e parte
do telhado ameaçando despencar.
Ficou com medo também de não ser bem recebido.
Depois de cinco batidas a porta se abriu, revelando um Robson
muito diferente daquele dos velhos tempos. Bem magro, Tinha aparência abatida,
olhos fundos, os cabelos que antes eram amarelo vivo agora estavam queimados e
tinham uma cor indefinida. No hálito um
forte teor etílico. As íris azuis e
belas não eram capazes de esconder a tristeza.
–Oi Robson – cumprimentou meio sem jeito, vendo uma
expressão de surpresa e um sorriso disfarçado no rosto descaído.
–Oi Roberto. Que bom que você veio.
–É a segunda vez que ouço essa frase hoje. Estou começando a
acreditar que sou bem recebido nos lugares. Mas... rapaz, foi difícil achar sua casa. Como
está primo?
–Entre por favor.
É feio ficar reparando as coisas na casa dos outros dá a
impressão de que se está colocando defeitos, mas de forma discreta e à jato
Roberto foi revirando um olhar disfarçado pelo ambiente surpreendendo-se com a
decrepitude daquela casa de um cômodo só, que tinha como adornos de
decoração roupas pelo chão, um fogão
muito sujo com grandes crostas de gorduras e restos de comida, um sofá rasgado
apoiado em quatro tijolos grandes e um verniz marrom sobre os móveis formado por
uma camada densa de poeira
–Sente-se, fique à vontade – E foram então testar o poder de
sustentação dos tijolos – Não repare a bagunça nem a falta de conforto.
–Nossa que calor que tá fazendo heim? – o tempo e a temperatura
são sempre a porta de entrada para outros assuntos mais sérios e o deslize para a falta de jeito e para
escapar da vergonha.
–Sim, tá demais. Nunca fez tanto calor assim. Está
precisando de chuva.
–Você tinha meu endereço?
–A Amanda me deu, mas eu custei a achar.
–Ah é mesmo eu havia passado para ela.
–Eu fiquei sabendo da morte da tia Nena. Eu sinto muito
primo, infelizmente não foi possível vir, mas eu gostava muito dela. Há três
anos não venho nessa cidade. Na verdade depois da morte da minha mãe eu não
queria voltar aqui. Tive que insistir comigo mesmo. A Amanda insistiu para que
eu viesse, então eu vim. Mas só Deus sabe!
Robsom pegou um cigarro pela metade, que estava jogado sobre
o sofá acendeu-o, tragou bem fundo, sem conseguir disfarçar o tremor das mãos.
–Ah minha mãe era tudo para mim. Depois que ela se foi, tudo
se complicou. Eu vendi a casa, acabei gastando o dinheiro com besteiras. Vim
morar nesse barracão alugado, nesse fim
de mundo Passei a beber, perdi o emprego. Sinto muito falta dela e agora no
natal, fico lembrando e... Ah deixa pra
lá primo, me fale de você.
–Eu vou levando a vida. Estou lá em BH, Moro sozinho, tenho
meu escritório, vou avançando devagar.
– Que bom! Realizou o sonho de ser advogado. Desde pequeno
dizia que queria ser doutor.
–Gosto da minha profissão.
–Aposto que já tem um carrão e um apartamentão. E faz
sucesso com a mulherada.
–Nada, estou pagando um apartamento pequeno financiado em
trocentas prestações o carro é um gol 2010. E quanto às mulheres dou umas
namoradinhas por aí, mas a gente não achei meu grande amor.
–Mas eu vejo que você está feliz primo. Se a tia Maria
estivesse aqui estaria orgulhado do filho dela. Sempre foi muito bom –
Abaixou-se um pouco, levantou a barra da calça para coçar a perna que parecia muito inchada
onde existia uma ferida com uma substância amarela com jeito e cheiro de putrefação.
–Aquela garrafa ali na mesa é o que?
–Conhaque.
–Posso?
–Claro. Lave o copo na pia.– mas ele não lavou
–Uau! forte heim!
–Ajuda a curar a dureza da vida.
–Acho que hoje eu estava precisando disso.
–Vai passar o natal com sua irmã?
–Sim e eu vim aqui laçar você para passar o natal com a
gente. Por favor, queremos você lá. Será um prazer... – E aquela corda ali no
canto primo, o que é aquilo?
–Não é nada não primo. Já não tem mais importância.
–Como é que é?
–Eu vou
–Não entendi.
–Eu disse que eu vou passar o natal com vocês. Convite
aceito.
–Ah que bom. Então esperamos você lá. Vamos à missa na
igreja matriz às sete horas, isso é
tradição e depois vamos para casa. Será um grande prazer. Nosso natal juntos. Ceia
simples... Uma família, mesmo com todos os desfalques no time, estaremos juntos
como nos velhos tempos.
–Roberto você me fez lembrar dos natais na casa da vovó Inês.
Nossa que povão e que festa que era! Nós três foi o que sobrou daquela família
inteira, uns morreram outros foram para longe. Agora acabou tudo.
–Acabou nada. A festa continua com a gente.
–É Roberto, É isso, juntos, comemorar. Família. Ainda tem
esperança. É, vai ser bom. Não imagina como vai ser bom. Nossa!
–Está tudo bem Robson? Você parece exaltado, emocionado.
–Está tudo bem. Muito bem. Agora está.
–Ah e Ele vai estar lá.
–Hum o Jesus sem braço.
– O próprio. O nosso
salvador que mesmo faltando um pedacinho continua salvando nosso natal.
–Hoje mais que nunca
tenho a certeza disso Roberto.
–Vou indo primo. Um ótimo natal para você. Desejo-te muitas
felicidades e que tudo se resolva em sua
vida. Todos esses problemas, tudo vai ficar bem tenha fé. Te esperamos lá logo mais.
–Feliz natal primo e muito obrigado pelo presente.
–Uai, mas eu não trouxe presente algum?
–Você trouxe sim. Veio até com laço. Acho até que vou adiar para ano que vem. Ou quem sabe
para sempre. Substituir um pelo outro.
–Como assim Robson? Adiar o que para ano que vem? Substituir
o que?
– O nó da forca.