quinta-feira, 14 de julho de 2022

TERRA FOFA

 Desequilibrou-se um pouco quando pisou naquela parte fofa da terra, ao lado da porteira. Sentiu uma fisgada e percebeu que havia torcido o tornozelo quando afundou o pé. Sentou-se num pequeno barranco ao lado da estrada e lamentou sua sorte.  Agora deveria ir para festa com o pé machucado. Ficou triste porque assim não poderia dançar e aproveitar a famosa fogueira de santo Antônio na fazenda Santa Tereza.

Todo ano Antônio dos santos, o famoso Antônio Pirica, sertanejo valente e amansador de burro bravo visitava aquele lugar. Adorava as festas de  fogueira e se divertia bastante. Morava só numa pequena tapera e sua vida era um pouco sem graça. Não existia muita diversão por ali, então quando chegava o mês de junho e a época das fogueiras era motivo de grande animação. Ia a todas e aquela da Santa Tereza era a mais famosa. Vinha gente de longe para os festejos.

Levantou-se devagar maldizendo a vida. –Que droga!Qual foi o idiota que fez esse buraco aqui perto da porteira? Só para a gente machucar. Agora nada de dança. A festa acabou para mim.

Apesar das mil pragas proferidas entrou na fazenda e aproximou-se do local da festa. Já estava começando.

A bandeira  de santo Antônio estava colocado sobre a mesa da sala e o dono da casa já começava a puxar o terço. Antônio procurou logo uma cadeira num cantinho do terreiro, pois  o pé latejava e precisava descansá-lo. Tentou concentrar-se na reza e esquecer o triste ocorrido. Prosseguiu-se assim uma profusão de Ave Marias e Padre Nossos. Havia gente, na sala, na cozinha no terreiro, todos contritos e orantes, mas pensando na fogueira e nas coisas que viriam depois.

Logo após o terço o dono da casa pegou o maestro e todos o acompanharam. A procissão seguiu pelo quintal, deu a volta por trás de dois pés de manga e se dirigiu para o local onde seria erguido o mastro. Antônio seguia devagar, mancando,  tentando não pisar forte no chão.

Olhou para o lado e viu algo que por alguns momentos amenizou sua dor. Uma caboclinha morena, vestida com os trajes típicos das festas juninas, um vestido de chita, com alguns remendos, laço de fita num cabelo com longas tranças, algumas pintinhas na cara. E uma graciosidade que o prendeu na primeira olhada. A moça olhava para ele  e sorria de forma encantadora. Sentiu-se logo atraído por ela.

 Ele queria continuar acompanhando  a procissão, mas o pé doía muito então voltou para junto da casa sentou-se a um canto  e ficou apenas  observando.

A procissão seguia com as rezas serpenteando pelo quintal.

Escolheu um lugar onde puder observar a moça e a partir daquele momento ela tornou-se a estrela da festa. A fogueira que acendeu seu coração. De vez em quanto seus olhares se cruzavam e sentia-se muito feliz por causa disso. Nesses momentos até esquecia as dores do pé.

Depois de algum tempo tudo mudou e no lugar da reza veio a alegre cantoria.  A tradicional cantiga do não bambeia não, já dava um novo clima àquele encontro, uma aura mais profana invadiu o ambiente e a sisudez foi aos poucos sendo substituída pela alegria e irreverência.

Sob as notas alegres da mesma canção a bandeira foi colocada no longo pedaço de bambu que estava ali no chão do terreiro esperando sua vez de brilhar. O bambu, que tinha o garboso codinome de mastro foi levantado e sua base colocada sobre um buraco na terra. Logo em seguido cobriram de terra fofa o que restou do buraco em volta do mastro.  A turma animou-se ainda mais quando o mastro foi erguido. A velha cantina aumentou de volume e os versos engraçados se multiplicaram. Começaram a socar a terra com pedaços de paus para firmar o mastro e o povo continuava cantando:

 

Depois foi uma festa só. Os fogos de artifício riscavam o céu, adicionado a ele algumas  estrelas e fazendo a noite ainda mais bela.

Bombinhas, rojões, balões pelo céu, trouxeram ao ambiente uma profusão de ruídos e cores num maravilhoso festival de belezas e encantamento.

Ouviu-se um ruído agudo, como se um foguete passasse em alta velocidade no meio do povo, era o que se chama de castelo, alguém acendeu um rojão e esse, em alta velocidade, acendeu vários outros, por onde passou deixou um rastro de explosão e de luz. Tudo encadeado.  Seu trajeto culminou na fogueira acendendo-a, e  ofertando  aos visitantes um grande espetáculo de cores e sons. Logo em seguida o céu se iluminou ainda mais, mais uma coleção de estrelas iluminando a linda noite. Uma cascata de luz caía sobre o terreiro. E a noite ficava cada vez mais quente pelo fogo e pela animação do povo.

Depois começou o arrasta pé. Sanfoneiros e violeiros espalhados pelo terreirão batido animavam a festa enquanto a turma dançava um delicioso forró.

As peneiras com biscoitos, pipoca e outras iguarias típicas das festas passavam para lá para cá.

A canjica e o quentão eram os parceiros da fogueira na dura missão de esquentar a noite de junho.

A festa animada e Antônio um pouco emburrado no canto. Queria dançar, brincar, conversar mais com as pessoas, mas aquela dor no pé não permitia. Maldita hora em que foi pisar naquela terra fofa.

O único consolo era olhar para aquela moça bonita que também não tirava os olhos dele. Seus olhos eram dois pedacinhos de ouro, dois pequeninos favos de mel, que brilhavam mais que a fogueira e esquentam seu ânimo.

Percebeu que ela se afastou um pouco e foi atrás. Era sua oportunidade para ficar a sós com a bela garota e conversar com ela.

Foi mancando até o outro lado do terreiro onde ela estava sentada em um banco de toco. Aproximou-se devagar para não assustá-la.

-Boa noite. Algum problema moça. Você está sentindo mal? Notei que deixou a festa de repente.

-Boa noite. Não é isso, é que me deu vontade de  sair um pouco do tumulto e olhar um pouco para o céu. Olha como a noite bonita!

-Sim, uma linda e fria noite de junho. Com uma bela lua cheia clareando os caminhos, as estradas, e fazendo com que a noite  pareça dia. A misteriosa e exuberante senhora das noites que paira sobre os prados e campinas. Solitária dama que vai espalhando beleza e encanto por onde passa. E as estrelas que se perdem no infinito são pequenos diamantes raros. Só não são mais belos que os seus olhos.

-Vejo que o senhor é um poeta e sabe falar coisas bonitas.

-Sua beleza me inspira... mas estamos conversando e eu ainda não sei seu nome

-Muito prazer eu me chamo Rita, mas todos me chamam por aqui de Ritinha.

-Prazer, eu sou Antônio.

-Eu notei durante a festa que o senhor estava mancando. O que aconteceu?

-Ah foi um acidente. Quando chegava por aqui pisei numa terra fofa do lado da porteira.  E torci meu tornozelo.

A moça deu uma pequena risadinha e falou de forma muito graciosa

-Bem, eu posso ajudá-lo. Tenho ali em casa um preparado com arnica e alguns outros ingredientes que são ótimos para esse tipo de contusão.

-Eu ficaria muito grato.

Ela então foi até a casa onde morava, trouxe o preparado, pediu a ele que tirasse a bota e com todo o carinho esfregou o liquido na região contundida, fazendo uma leve, e ousada massagem.

Depois ficou movimentando o pé dele torcendo e puxando enquanto o rapaz sentia ao mesmo tempo dor e prazer.

E o resto da noite foi só alegria. Conversa, dança e encantamento. Alguns são fisgados pelo coração, outros pelo pé.

Ritinha sentiu o sonho desabrochar em suas mãos quando ele prometeu voltar ali no dia seguinte para visitá-la.

Aquele estava fisgado e fisgado pelo pé.

 Nascia ali a promessa de uma vida nova e feliz.

 

No outro dia bem a moça toda sorridente foi até a porteira levando consigo uma pequena pá. Cavou a terra fofa e desenterrou o pobre do santo Antônio. Limpou a terra que estava sobre a imagem a abraçou, um abraço forte que significou ao mesmo tempo um pedido de perdão e um agradecimento. Colocou a terra no lugar, pôs uma pedra em cima para que ninguém mais se machucasse. Isso já não era mais necessário. E voltou para casa abraçadinha com o santo.

Salva Santo Antônio o Santo casamenteiro.

 

 

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