segunda-feira, 18 de março de 2024

O APITO

 Por muita  vezes ouvi o apito do trem nas madrugadas da  minha vizinha cidade de Divinópolis.

Naquela época final da década de 80 começa da de 90 existia um Múcio jovem cheio de vitalidade e vontade de viver. E uma das suas diversões preferidas era visitar a tia na cidade próxima. Era uma alegria lá estar. A casa simples, a comidinha gostosa o carinho da tia, o aconchego do lugar, tudo era encantador e comovente.

Além da casa tinha a cidade que por mim era endeusada. Como era bom ir até lá,  desfrutar das ruas, fazer compras, ir a bares, praças, cinemas, clubes, bailes  de todo o vigor  daquele pequeno e amado micro cosmo que nos finais de semana tinha ruas apinhadas de gente e a vida pulsava em cada avenida! A alegria e animação da juventude... Uma cabeça cheia de sonhos, e ávida por realizações, amores e prazer.  

E depois das noitadas e diversões já na cama o som grave que rasgava a madrugada assassinando seu silencio  e ecoando por cada canto.  

Certa madrugada  ao ser acordado pelo potente ruído, e dominado pelo movimento atrevido e até desagradável de ideias perniciosas  que também  buzinavam em minha mente, deixei-me levar por pensamentos melancólicos e escatológicos: “um dia tudo isso vai acabar, um dia talvez eu ouça esse apito, mas não tenha mais o aconchego dessa cama, a gostosura dessa casa, nem carregue mais comigo toda essa alegria jovial. Todo esse reduto de prazer vai virar fumaça. Talvez daqui há alguns anos eu aqui esteja, hospedado em um hotel e ouça esse apito e perceba que perdi tudo isso e então vai doer e vai doer muito.

O tempo passou e a previsão se cumpriu. Depois da morte dos meus tios, já bem mais velho, numa viagem àquela cidade dormindo em um hotel, acordo com o famigerado apito, e ali uma pequena alucinação aconteceu. A disposição dos móveis no quarto  do hotel era muita parecida com a do quarto  que dormia na casa de minha  tia. Uma cama de casal que ficava ao lado da porta  tendo bem a minha frente uma janela, na parte lateral um armário... Um quarto com as mesmas  paredes e teto brancos  que parecia muito com aquele. Então fui puxado do sono pelo conhecido apito e  por alguns segundo quando estava entre o sono e o despertar tive a nítida impressão de voltar àquele quarto. A cena aconteceu em um tom cinza num limbo entre sonho e realidade. E foi mágica.  Eu estava lá de novo, e havia o apito e havia todo aquele pulsar de alegria de outros tempos, e então nada havia acabado. A vida naquele momento ainda tinha a mesma poesia daquelas noites divinopolitanas da juventude, ainda era inundado pela força sem igual dos hormônios e pela vontade de viver e abraçar a vida em toda a sua plenitude.  Fui acordando devagar  e demorei um pouco para entender. Quando a ficha caiu, eu me lembrei daquela noite e daquele estranho pensamento. Minha mente conduziu-me até ali, fez cumprir a profecia daquela madrugada de tantos anos.

E o apito continuou rasgando a madrugada e a minha alma, seu silvo grave penetrante parecia pronunciar em tom áspero e desesperador a frase:  -Nunca mais...

Então doeu, doeu como eu previ que doeria. É triste ver as referências, os prazeres, as coisas que marcaram a vida da gente virarem fumaça de trem se esvaindo pelo ar ao som de um apito triste.

É como se o apito do trem da vida estivesse sempre nos avisando que estamos perdendo muitas coisas pelo caminho.

Piuiiiii.

 

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