Por muita vezes ouvi o apito do trem nas madrugadas da minha vizinha cidade de Divinópolis.
Naquela época final da década de 80 começa da de 90 existia
um Múcio jovem cheio de vitalidade e vontade de viver. E uma das suas diversões
preferidas era visitar a tia na cidade próxima. Era uma alegria lá estar. A
casa simples, a comidinha gostosa o carinho da tia, o aconchego do lugar, tudo
era encantador e comovente.
Além da casa tinha a cidade que por mim era endeusada. Como
era bom ir até lá, desfrutar das ruas, fazer
compras, ir a bares, praças, cinemas, clubes, bailes de todo o vigor daquele pequeno e amado micro cosmo que nos
finais de semana tinha ruas apinhadas de gente e a vida pulsava em cada avenida!
A alegria e animação da juventude... Uma cabeça cheia de sonhos, e ávida por realizações,
amores e prazer.
E depois das noitadas e diversões já na cama o som grave que
rasgava a madrugada assassinando seu silencio e ecoando por cada canto.
Certa madrugada ao
ser acordado pelo potente ruído, e dominado pelo movimento atrevido e até desagradável
de ideias perniciosas que também buzinavam em minha mente, deixei-me levar por
pensamentos melancólicos e escatológicos: “um dia tudo isso vai acabar, um dia talvez
eu ouça esse apito, mas não tenha mais o aconchego dessa cama, a gostosura
dessa casa, nem carregue mais comigo toda essa alegria jovial. Todo esse reduto
de prazer vai virar fumaça. Talvez daqui há alguns anos eu aqui esteja,
hospedado em um hotel e ouça esse apito e perceba que perdi tudo isso e então
vai doer e vai doer muito.
O tempo passou e a previsão se cumpriu. Depois da morte dos
meus tios, já bem mais velho, numa viagem àquela cidade dormindo em um hotel,
acordo com o famigerado apito, e ali uma pequena alucinação aconteceu. A
disposição dos móveis no quarto do hotel
era muita parecida com a do quarto que
dormia na casa de minha tia. Uma cama de
casal que ficava ao lado da porta tendo
bem a minha frente uma janela, na parte lateral um armário... Um quarto com as
mesmas paredes e teto brancos que parecia muito com aquele. Então fui puxado
do sono pelo conhecido apito e por
alguns segundo quando estava entre o sono e o despertar tive a nítida impressão
de voltar àquele quarto. A cena aconteceu em um tom cinza num limbo entre sonho
e realidade. E foi mágica. Eu estava lá
de novo, e havia o apito e havia todo aquele pulsar de alegria de outros
tempos, e então nada havia acabado. A vida naquele momento ainda tinha a mesma
poesia daquelas noites divinopolitanas da juventude, ainda era inundado pela
força sem igual dos hormônios e pela vontade de viver e abraçar a vida em toda
a sua plenitude. Fui acordando devagar e demorei um pouco para entender. Quando a
ficha caiu, eu me lembrei daquela noite e daquele estranho pensamento. Minha mente
conduziu-me até ali, fez cumprir a profecia daquela madrugada de tantos anos.
E o apito continuou rasgando a madrugada e a minha alma, seu
silvo grave penetrante parecia pronunciar em tom áspero e desesperador a
frase: -Nunca mais...
Então doeu, doeu como eu previ que doeria. É triste ver as
referências, os prazeres, as coisas que marcaram a vida da gente virarem fumaça
de trem se esvaindo pelo ar ao som de um apito triste.
É como se o apito do trem da vida estivesse sempre nos
avisando que estamos perdendo muitas coisas pelo caminho.
Piuiiiii.
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