Moro em cidade de interior e aqui ouço os galos cantando na madrugada, alguns cantam lá de bem longe, outros estão aqui nos terreiros vizinhos, tem até o pequeno garnisé que fica aqui no meu quintal. Eles fazem a sinfonia do amanhecer, um coro bem sincronizado. Conversam cantando. Um canta o outro responde e assim vai até que o dia venha e cale por algum tempo suas vozes.
Despertadores naturais, seresteiros das madrugadas, menestréis do sereno, cantando odes à aurora e brindando ao novo dia. Fazem a ponte entre o escuro e o claro, cordas vocais que vibram no degradê vermelho e amarelo, transição entre dois mundos, o sono o despertar, o claro o escuro. São os eternos vigilantes da madrugada.
Mas o que guarda aquele canto? Qual mistério está escondido naquele som um tanto quanto desafinado, desajeitado e esquisito? Não existe ali o trinado harmônico e sereno de pássaros canoros, aqueles que dobram seu cantar enchendo o ar de notas bem combinadinhas, que acariciam os ouvidos da gente. Não, o canto parece fora de hora, de lugar, um pouco rouco, notas distorcidas, mas mesmo assim há um encanto. Há beleza mesmo nas notas desafinadas, porque eles conseguem despertar dentro da gente algo escondido, perdido nas dobras do tempo. Transportam-nos para outras eras e o som acorda uma melancolia e um pesar que moram lá dentro do coração da gente e nem sabíamos que estava lá, até que o som rasga a madrugada puxando a tristeza lá do fundo.
É triste, é triste o cantar do galo. O som ao longe ou ao perto, desperta dor, medo, perda e lamento. Eras perdidas da infância voltam a nos visitar, frases não ditas ditam coisas, alegrias sepultadas em nossa história mostram a inutilidade de seus túmulos, pessoas que se foram parecem ressuscitar com aquele canto e a dor e o flashes inconvenientes das crises existências e dos pensamentos escatológicos e negativos se instalam em nossas camas, deitam ao nosso lado, conversam com a gente e cantam também, cantam uma canção muito triste, a marcha fúnebre talvez... Prosélitas do mal, essas ideias embaladas pelo canto melancólico que ecoa por todos os cantos, convertem tudo ao redor para a doutrina do fim, da inutilidade e do lamento.
O cantar do galo traz os ares da tristeza, a marca de outros tempos, medos incertezas, dores, o terror da morte, o pavor do nunca mais e o despertar triste, mas ainda assim há beleza e encanto naquele cantar. A madrugada colorida de vermelho e amarelo carregada de belezas e promessas nada seria sem eles.
Vamos acordar!
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